Picasso disse e alguém escreveu " a arte é uma grande mentira que nos faz perceber a verdade ". A verdade é que ontem fui ao teatro, melhor, fui ver teatro à Culturgest e, embora não tenha percebido tudo, gostei. Spectaculu.
À entrada, aquando da indicação de lugares, é-nos dito que o anfiteatro está repleto de fumo e que, caso nos faça espécie, podemos abandoná-lo e o dinheiro do bilhete é-nos devolvido. É curioso, mas por diversas vezes fui ver coisas más e nunca me foi dito que me restituíam o dinheiro caso o espectáculo me causasse espécie. Fiquei expectante e com vontade de "aguentar" o fumo.
Quando entrei na sala lembrei-me de D. Sebastião e comecei a ficar com medo de me perder dos meus amigos e ser dada como desaparecida numa noite de nevoeiro, perdão, fumaça. Aqui não se falava árabe, mas polaco, italiano e francês, que diga-se de passagem para mim é o mesmo.
Sentei-me e um senhor muito simpático, com pinta de italianni (vamos desde já combinar que de agora em diante aquilo que escreva e se vos assemelhe como imperceptível deverá ser lido enquanto estrangeiro, ora polaco, ora italiano, ora francês. Excepcionalmente, o português e o inglês não carecerão de tal atenção) abordou-me em inglês para que mudasse de cadeira, porque iria ver melhor numa outra. Segui as indicações e confesso que o italianni tinha razonni, eco.
Voltei a sentir-me qual D. Sebastião quando a peça deu início. Completetly lost... Lembrei-me então que talvez tivesse sido útil ter lido o prospecto que uma menina simpática tinha tido a gentileza de me dar enquanto esperava a entrada. Já me tinha acontecido o mesmo quando fui assistir à AIDA, no estádio nacional. "Não leu papelinho, agora tá a leste". Mas dessa vez estava de directa e a noite anterior tinha sido bombástica. Voltando à peça I Polacchi ( Os Polacos), ainda tentei utilizar a luz do meu nike em prol de ávida leitura, mas foi em vão. Quando me disseram que iria durar 1H45 decidi fazer da peça a peça da minha vida. Comecei a desenvolver capacidades em mim nunca imagináveis. De um momento para o outro estava delirante comigo mesma: percebia polaco, francês, italiano, portuguiano e inglês sem dificuldade alguma. A última experiência correu menos bem e era legendada, falo-vos do filme do Manoel de Oliveira, em que numa conversa à mesa num navio se fala simultaneamente todas estas línguas à excepção do polaco que é substituido pelo grego. Ah! Na I Polacchi também se ouviu espanhol - "Venga, venga"!
Já dizia o poeta, primeiro estranha-se, depois entranha-se, e foi isso mesmo, depois de entrar no espírito comecei a achar fantástico.
Confesso que os 10 primeiros minutos dissertei sobre a música de fundo, já que, ao contrário do que era suposto, era a única coisa a captar a minha atenção. Depois seguiu-se a voz estridente de um dos actores que proferia em italiano as medidas do corpo de outro, o riso da Mãe Ubo, o gordo que de perfil era mais gordo, um pequeno grande actor que tão novinho falava um italiano perfeito - "perche la pistolli no va bene?" -, o facto de lá mais para o meio da peça ter tido uma arma apontada à cabeça também contribuiu em larga escala para prender a minha atenção, o reboliço de 13 homens e 1 mulher andarem pela sala a correr à procura dos bilhetes tipo "picas" da carris ( tanta interacção com o público só no Lado B do Tochas), as luzes, os sons, tudo... Envolvi-me, admito.
A peça tem imensos momentos hilariantes e alguns que provocam nostalgia. A reter na categoria dos hilariantes estão: a dança do Rei Ubo e da Mãe Ubo; o barulho de 14 bocas a fingir que estavam a comer ( dá um efeito engraçado, tipo "Vozes da Cozinha"); o " put a pacemaker into the heart of the king"; o ter rapidamente reconhecido parole como "4 salti"; "ferrari", "gastroenterite", "eco", "caffè", "pollo", "testicolo"; cada vez que um dos actores dizia " io sono innocente io sono innocente" ou quando um outro gritou "tu sei un fascista-comunista" (fui ao rubro); o Rei na varanda a acenar antes de cair morto; cada vez que o Pai Ubo falava em português -"tenho medo, tenho medo" ,"gostei"- o referirem-se à plateia como "turiste giapponese". Um autêntico reviver de Juliana (Ana Paula Arósio) e Matheu (Tiago Lacerda), em Terra Nostra.
Dos nostálgicos destaco as canções que me recordam o tempo de lobita (para quem não sabe, escuteira) e que eram cantadas repetidas vezes e o reboliço que se fazia sentir em determinados momentos, pois também me reportava para os tempos da infância.
Um dado interessante, a meu ver, foi o facto de só ter assistido a tantas mortes em palco no "Tito Andrónico". Contudo, na peça de Marco Martinelli, cada vez que alguém morria, a tensão de Shakespeare dava lugar ao riso. Aliás, há uma parte em que estão todos deitados no chão mortos e que o gordo que é mais gordo de perfil vai para morrer e todos se levantam para que o "novo morto" não cai sobre eles. A morte deles, melhor, a queda da morte também era de chorar a rir.
O riso é internacional, o riso é poliglota. Eu falo "riso" e falei muito nesta peça.
Um espectáculo que provavelmente perderam, pois só esteve em cena ontem e estará hoje, pelo Teatro delle Albe. O grupo de actores é soberbo.
Fica aqui um copy/paste, só para vocês:“I Polacchi recebeu três nomeações para o Prémio Ubu como “espectáculo do ano”, como “a melhor encenação” e como peça “para actores abaixo dos trinta”. Foi convidada a estar presente em diversos festivais, de Estocolmo a Teerão, e é considerada uma obra de referência do teatro italiano actual. I Polacchi é um excelente espectáculo.”
Já que ainda estamos no recinto da Culturgest, aproveito para lembrar que é já no dia 19 e 20, que no pequeno auditório deste espaço poderemos assistir aos vencedores do 27º Cinanima.
Despeço-me com amizade